segunda-feira, 15 de dezembro de 2014


Tagarelei: Qual o sabor das suas asas?



- "Flocos, por favor!". Disse animada.


Retornava do trabalho, cansada, com passos curtos e chinelo de dedo. Afinal, em uma tarde tão quente como aquela, eu não poderia me manter de salto. Passei em uma sorveteria comum do bairro, sozinha ria mentalmente lembrando de momentos com amigos. Havia sido um dia muito complicado no trabalho. Então achei que merecia mais do que memórias de meu entretenimento, merecia um sorvete. Flocos, meu predileto. A atendente parecia estar passando por  um dia pior que o meu. Sorri tentando ao menos passar boas energias, talvez conseguisse um segundo de sorriso no seu dia - Tentativa falha - Peguei meu sorvete e segui meu caminho.

O percurso do meu trabalho até a sorveteria não era nem de cinco minutos, e da sorveteria ao ponto de ônibus de retorno a minha casa, menos ainda. Porém, naquele dia parecia que pisava em neve e meus pés afundavam. Estavam pesados e cansados. Ou seja, lento como os de uma tartaruga. Mas não aquela que vira moral da história, e sim semelhante a da casa de minha tia, que por sinal nunca vi passar da cozinha. 

Não sei se foi a lentidão dos meus passos, o cansaço e problemas que o dia me trouxe, ou as boas lembranças. Nesse dia não era só os meus pés que estavam presos ao local, os meus olhos. 

Tenho que dizer que morar em São Paulo cansa a mente de qualquer um. Trânsito, alto nível de estresse nas pessoas, e para piorar, o que os meus olhos ficaram presos. 

Tão pequeno, não conseguia identificar sua idade. Acredito que não tinha mais do que sete anos. 

- "Me dá um pouco tia?"

Meu sorvete derretia, gotas de flocos caiam na calçada. Eu, paralisada o olhava. Suas mãos estavam sujas, suas roupas rasgadas e com os pés sentindo o calor do chão quente. 

O que era ele?

Mais um olhar pidão que vimos todos os dias nas ruas?

Mais um rosto sujo da poeira do sofrimento?

O que era ele?

Eu estava presa!

Sentia vínculo naquele olhar, sentia que algo ali me pertencia. Perguntei:

- " Cadê sua mãe?"

Tímido e já agoniado de vontade pelo derretido sorvete, balançou a cabeça com as mãos estendidas informando que não sabia.

Dei meu sorvete a ele e tentei seguir. Meus pés continuavam presos, meus olhos lacrimejavam ao vê-lo parado saborear algo que resolveria o meu cansaço do dia. Para ele, mataria a vontade, talvez da vida toda. 

Ele sorriu, abraçou minha perna e correu saltitando. Pensei em segui-lo, mas estava completamente presa na cena. 

O que era ele? 

Ele era a tartaruga da moral da história, a que vence a corrida e comemora. 

Não só eu, como muitos outros nesse mesmo dia,  reclamaram, se fecharam para os sorrisos. Enquanto um sorvete nem se quer precisou pedir.

Posso dizer que naquele momento queria levá-lo comigo, colocá-lo em meu ninho, mesmo não tendo condições ao menos de me sustentar direito. Queria ao menos ensiná-lo a voar. 

(...)

Mas e nós, possuímos mesmo nossas asas?

Estou em casa agora, mas meus olhos ainda estão lá.

Ele era apenas um menino de rua que possuí o sorriso do agora. 

Com asas da simplicidade em meu ninho chamado memória, dorme.


                                                         KeTagarela

                       
                                           Imagem: Christian Hopkins

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto Kelliane, na expectativa de novos textos.